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Publicado em: 16 de janeiro de 2017

Problema de Primeira Ordem

A judicialização da saúde subverte o uso racional dos recursos disponíveis, comprometendo a execução de políticas públicas e ameaçando a sobrevivência das operadoras.

Ninguém questiona o direito de se recorrer a um juiz para garantir o que nos é devido como consumidores ou cidadãos. Até porque muitas das ações judiciais em curso neste exato momento são procedentes – derivadas, por exemplo, do descumprimento da lei ou de uma cláusula contratual. Mas é fato que os abusos cometidos por meio desse instrumento também são muitos e ameaçam a sustentabilidade do setor. “A judicialização se transformou num problema de primeiríssima ordem”, diz o professor Paulo Furquim, coordenador do Núcleo de Regulação e Concorrência do Insper. “O volume de demandas judiciais subverte o uso racional dos recursos, provocando distorções que comprometem as políticas públicas, colocam em risco a saúde suplementar e vão contra o interesse coletivo.”

Os números da judicialização impressionam. De acordo com o último levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o total de processos envolvendo assistência à saúde, tanto pública quanto privada, já ultrapassava 400 mil em todo o país. Não espanta, portanto, que esse fenômeno represente forte impacto no caixa das operadoras. Segundo um levantamento da Abramge, o gasto do setor para atender a demandas judiciais praticamente dobrou em apenas dois anos, saltando de R$ 558 milhões em 2013 para R$ 1,2 bilhão em 2015. Nas contas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), cerca de um quarto desse montante foi consumido com procedimentos não previstos em contrato, ou seja, aos quais os consumidores, pelo menos em tese, não teriam direito.

Ainda que exista fundamento legal para muitas das ações movidas na Justiça, os especialistas da área são unânimes ao afirmar que o volume crescente de processos é uma anomalia, sintoma inequívoco de algo está errado. A situação é agravada pelos inúmeros abusos observados entre essas ações. Há quem recorra à Justiça para exigir itens os mais inusitados, tais como xampu, água de coco, fraldas, lenços umedecidos… Até um filtro de barro, acredite, já foi objeto de ação judicial. Outros buscam nos tribunais acesso a tratamentos caríssimos, ainda que de eficiência questionável, ou medicamentos experimentais que nem foram aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Para a advogada Beatriz Viegas, especializada em saúde suplementar e Direito Médico, esses casos não são exceções e revelam o grau de insegurança jurídica enfrentado pelas operadoras de planos de saúde. “Verifica-se com muita frequência a figura do consumidor que economiza na hora de contratar um plano contando com decisões favoráveis a ele no tribunal”, afirma Beatriz. “É como comprar um Fusca e querer andar de BMW”. O resultado dessa equação, segundo a advogada, é incerteza econômica na mesma medida. “As empresas simplesmente não sabem qual será o impacto da judicialização nas suas finanças. Nesse ambiente, fica muito difícil a sobrevivência das pequenas e médias operadoras. Só as grandes conseguirão resistir.” Os dados da ANS parecem corroborar a opinião de Beatriz. No ano 2000, havia cerca de 1.300 operadoras com beneficiários no país. Hoje, são aproximadamente 800. “Quando empresas fecham as portas, a concorrência diminui”, lembra advogada. “Isso nunca é vantajoso para o consumidor.”

Vale sempre destacar: a busca pelo Poder Judiciário por consumidores que se sentem prejudicados, por si só, não é o que ameaça a sustentabilidade da saúde suplementar. Aqueles que se sentem prejudicados em razão do descumprimento da lei ou do contrato devem procurar a Justiça, caso não consigam solucionar a demanda diretamente com a operadora. “O que causa desequilíbrio e ameaça o setor são as demandas que obrigam as empresas a cobrir procedimentos sem cobertura contratual ou legal”, afirma o advogado Geraldo Luiz Vianna, professor de Direito Constitucional e Administrativo da Faculdade de São Lourenço, em Minas Gerais. “Conheço algumas operadoras que chegaram a sofrer direção fiscal da ANS, em razão da situação econômica que se agravou por diversos motivos acumulados, entre eles, o excesso de demandas judiciais com decisões desfavoráveis no sentido de garantir coberturas não previstas nos contratos.”

A situação fica ainda mais grave, segundo o professor, quando as demandas judiciais vêm acompanhadas do pedido de indenização por dano moral – algo muito mais frequente do que se costuma imaginar. A advogada Beatriz Viegas concorda. E identifica aí mais um aspecto insólito da judicialização. “Há casos em que a pessoa busca o tribunal para pedir uma ressonância magnética de R$ 200 e aproveita o embalo para exigir R$ 10 mil da operadora como reparação por danos morais.”

Com uma canetada, um juiz da 7ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo fez chegar a ela o Juxtapid, um medicamento para controle de colesterol extremamente caro (cada cápsula de ingestão diária custa US$ 1.000) e sem registro no Brasil. Fabricado nos Estados Unidos, o remédio foi aprovado por lá apenas para o tratamento de uma doença genética rara, não se prestando ao combate do colesterol alto em nenhuma outra situação. A decisão, além de não trazer nenhum benefício à paciente, significou para a Secretaria Estadual da Saúde um prejuízo de R$ 304 mil. O juiz se defende alegando ter agido de acordo com os fundamentos jurídicos, por confiar no relatório do cardiologista que prescreveu o remédio. Seu veredicto, portanto, teria se baseado na presunção de que um pedido assinado por um médico e um advogado é sempre lícito.

“É natural que isso aconteça porque os juízes não são obrigados a entender de tudo, especialmente quando se trata de um assunto tão complexo quanto a saúde”, diz a advogada Lenir Santos, criadora do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa) e ex-secretária de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde. “Na falta de embasamento técnico, eles optam pela preservação da vida, o que nem sempre redunda na decisão mais acertada”.

Some-se a isso outro problema, o da chamada “indústria da judicialização”, e pronto, tem-se um ambiente no qual predomina a cultura da litigância. Traduzindo: a ação judicial, que deveria ser o último recurso para o cidadão obter um tratamento, para muitos passa a ser o ponto de partida. É nesse cenário que surgem personagens como os “advogados de porta de hospital”, médicos que encorajam seus pacientes a buscar benefícios pela via jurídica e grandes laboratórios ou fabricantes de próteses dispostos a lubrificar as engrenagens que fazem a tal “indústria” funcionar.

“São fartos os indícios de que a judicialização na saúde é estimulada de maneira oportunista, com petições idênticas e dezenas de ações envolvendo sempre o mesmo medicamento, o mesmo médico e o mesmo advogado”, diz Lenir. Para Maria Stella Gregori, professora de Direito do Consumidor da PUC de São Paulo e ex-diretora da ANS, outra evidência nesse sentido é o elevado número de pedidos de liminar que chegam aos juízes justamente às sextas-feiras, véspera do fim de semana. “Há uma clara orquestração nesse tipo de atitude, que tira proveito do pouco conhecimento técnico que os juízes têm do assunto.”

 

EFEITOS COLATERAIS

Igualmente evidentes são os efeitos colaterais provocados por esse fenômeno. Exemplo: o custo de certos produtos tende a disparar quando o poder público ou a operadora de planos de saúde têm de atender com urgência uma demanda judicial. Não raro, uma prótese pela qual normalmente se paga R$ 20 mil chega a custar R$ 80 mil nessa situação. Desnecessário dizer que isso pode representar um impacto devastador na contabilidade das operadoras – repercutindo, também, no bolso dos beneficiários. “As empresas se veem obrigadas a fazer a previsão desses gastos nos cálculos atuariais, que definem os valores das mensalidades. O repasse para o consumidor acaba sendo uma consequência natural”, diz o professor Geraldo Luiz Vianna. Em 2015, o encarecimento dos planos chegou a 12,2%, maior taxa registrada em nove anos. Parte da culpa deve ser colocada na conta da judicialização.

A conclusão, levando-se em conta esses argumentos, não poderia ser outra: ainda que a judicialização responda a uma demanda legítima, os recursos disponíveis são finitos e não se pode oferecer tudo para todos. “O direito à saúde, infelizmente, tem de ter limites”, afirma a advogada Lenir Santos. “Afinal, tanto o poder público quanto a iniciativa privada lidam com orçamentos que também são limitados. Do jeito que a coisa está, os tribunais, em vez de garantir justiça, estão promovendo cada vez mais desigualdade.”

Resumo da matéria extraída da revista Visão Saúde, edição out/nov/dez 2016. Ano 1 nº 2.